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“Vinculação para aval” prestado em livrança em branco e suscetibilidade de denúncia
14 de Fevereiro, 2025

RESUMO

O Supremo Tribunal de Justiça entende que, quando um sócio presta um aval numa livrança em branco, existe a possibilidade do “avalista” se desvincular, até ao momento do preenchimento do montante e data de vencimento no título, em certos casos.

INTRODUÇÃO

  1. No dia 8 de janeiro de 2025 foi publicado no Diário da República o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2025 (doravante, “AUJ n.º 1/2025”). O acórdão ponderou a possibilidade de denúncia de um aval prestado numa livrança em branco por um sócio e gerente de uma sociedade por quotas que posteriormente deixou de exercer funções de gerente na sociedade e de ser sócio da mesma.

No mesmo, o Supremo Tribunal de Jurisprudência estabeleceu a seguinte uniformização:

“1 ― A vinculação para aval prestada em livrança em branco é, desde que assumida sem prazo ou por prazo renovável, decorrido o prazo inicial, suscetível de denúncia, pelo vinculado para aval que tenha deixado de ser sócio ou sócio-gerente da avalizada, até ao preenchimento do título.

2 ― A denúncia só produzirá efeitos para o futuro, ou seja, a desvinculação só será eficaz em relação a montantes que venham a ser solicitados após a denúncia produzir os seus efeitos.”

  1. A decisão que comportou revista para o Supremo Tribunal de Justiça teve por base uma ação executiva para pagamento de quantia certa proposta pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. (doravante “CGD”) contra três devedores, fundando-se numa livrança avalizada pelos executados, no valor de € 56.758,77, com data de vencimento de 28/05/2021.

A livrança tinha sido “subscrita em branco” e foi preenchida pela CGD, quanto ao valor e à data de vencimento. Dizia respeito à utilização de um cartão de crédito, emitido a favor da ESIGP Lda. (doravante, a “Sociedade”), sendo que nos termos da mesma, em caso de incumprimento, a CGD estava autorizada a preencher a livrança «pelo valor correspondente ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos», conforme procedeu no caso.

Um dos executados, antigo sócio e gerente da sociedade, deduziu embargos onde alegou que: (i) o crédito reclamado não foi por si utilizado, e que (ii) “por carta de 14/04/2009, solicitou à embargada o cancelamento do cartão de crédito que possuía e entregou-o àquela, sendo que à data a conta bancária estava saldada e a livrança respeitava exclusivamente à utilização daquele cartão entregue, ao passo que o crédito em causa se refere a um outro cartão cujo contrato data de 31/03/2010, termos em que concluiu que o preenchimento da livrança em causa foi abusivo”.

O juiz de primeira instância proferiu sentença no sentido de considerar improcedente os embargos de executado.

O executado recorreu e o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão proferido a 22.06.2023, deu ao recurso e revogou a sentença recorrida. Na fundamentação, quanto à questão de se o sócio, que também exerceu funções de gerente poderia, e em que termos, desvincular-se unilateralmente da garantia prestada, ponderou a aplicação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013 (doravante “AUJ n.º 4/2013”) segundo o qual “tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada”.

No entender do Tribunal da Relação de Lisboa, o AUJ n.º 4/2013 só poderia valer perante um “aval completo” (o que não era o caso dos autos, por se estar perante uma “vinculação para aval”, prestado em livrança em branco).

A CGD recorreu da referida decisão e interpôs um recurso de revista dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça.

III. Distribuídos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça foi proposto que o julgamento do recurso de revista fosse feito de modo ampliado “por se perspetivar a prolação, na presente revista, de Acórdão que considere não aplicável a jurisprudência uniformizada pelo AUJ 4/2013 à «vinculação para aval» e tal se revelar necessário e conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência”.

DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

  1. À luz dos factos provados pela primeira e segunda instância, o Supremo Tribunal de

Justiça entendeu que se estava perante uma vinculação para aval (i.e., “a assinatura aposta em título em branco e que se destina a valer como aval cambiário uma vez preenchido o título”), e não um verdadeiro aval/ obrigação cambiária. Por se estar perante uma vinculação para aval, não se poderia sujeitar a mesma ao mesmo regime que um aval aposto num título completo. Adicionalmente, não se pode considerar que a posição do avalista de um título completo é idêntica à de um avalista de um título em branco (no título completo é conhecido o montante a pagar e o prazo de vencimento).

  1. Estando-se perante uma obrigação “pré-cambiária”, a possibilidade de desvinculação não pode encontrar a sua solução no regime das obrigações cambiárias. Na medida em que a subscrição com vista a aval é assumida no pacto de preenchimento (em que o subscritor aceita o preenchimento em determinados termos), será em relação a tal vínculo que se coloca a questão de poder ser desvinculado unilateralmente até ao preenchimento do título, por denúncia ou resolução. Se o vínculo for assumido sem prazo, vale a regra da livre denunciabilidade.

Admitiu-se que no caso dos autos existia a possibilidade de denúncia porque (i) ninguém está obrigado a estar vinculado ad aeternum e por (ii) não existir um prazo no acordo/pacto de preenchimento. Também se afirmou que em caso de ser celebrado um contrato que se prorroga por

sucessivos períodos, após o período inicial, o mesmo passa a considerar-se celebrado por tempo indeterminado e também pode ser denunciado.

III. Considerou-se também que porque a denúncia tem eficácia “ex nunc”, “a desvinculação permitida ao sócio-avalista só será eficaz em relação à responsabilização por montantes solicitados pela sociedade após a cessão de quota, mais exatamente, após a desvinculação/denúncia produzir os seus efeitos.”.

Exercida a faculdade de denúncia e produzidos os respetivos efeitos (que são meramente ex nunc), a livrança não podia ser completada como aconteceu in casu. Considerou-se provado que à data da desvinculação (i.e., o envio da carta), não havia saldo em dívida no contrato subjacente. Acresce que também se considerou provado que a utilização da abertura de crédito não se iniciou antes de maio de 2010. Deste modo, quando foi completada a livrança, inscrevendo-se o montante devido e a data de vencimento, foi preenchida sem poderes, na medida em que a produção de efeitos da denúncia extinguiu os poderes de preenchimento em relação ao embargante (que havia “avalizado em branco”). O preenchimento sem poderes pode ser invocado/oposto ao portador imediato, conduzindo, por isso, à procedência dos embargos.

  1. A omissão da palavra “denúncia” na carta enviada pelo sócio na qual pediu que fosse substituído no aval pelos atuais sócios não releva porque as suas ações (i.e., (i) o pedido de substituição dos avales; (ii) a entrega do cartão de plástico; e a (iii) ter deixado de exercer qualquer função e controlo na gestão da Sociedade) são concludentes da desvinculação pretendida.
  2. Também se declarou que o direito de denúncia tem de exercido conforme à boa-fé, “levando em conta os motivos subjetivos do prometido avalista que assim procede e a legítima expectativa do credor/financiador”. Deste modo, segundo o Supremo Tribunal de Justiça, o disposto no artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil vincula o “avalista a não denunciar o «vínculo» enquanto mantiver a qualidade de sócio, de sócio-gerente ou de gerente”. Acresce que se considerou não ser razoável que a CGD pretenda manter vinculados ex-sócios já alheados da sociedade, assim como também não é razoável a sociedade continuar a beneficiar da garantia de sócios que, entretanto, deixaram a sociedade.
  3. Afastou-se a possibilidade de resolução do contrato por não se preencher o disposto no artigo 801.º, 2 do CC e não se preencherem os pressupostos do artigo 437.º do CC.

DECLARAÇÕES DE VOTO

A presente decisão contou com 4 declarações de voto dos juízes conselheiros Maria João Vaz Tomé, Graça Amaral, Maria Olinda Garcia e Ricardo Costa.

Nas declarações de voto da Juíza Conselheira Mestre Maria João Vaz Tomé e da Juíza Conselheira Graça Amaral, foi declarado que o mecanismo mais adequado para cessar o pacto de preenchimento neste caso seria a resolução do mesmo (por inexigibilidade) dada a existência de um fundamento para a sua cessação: a extinção da qualidade de sócio da Sociedade. Acresce que, segundo a Juíza Conselheira Graça Amaral, o contrato garantido não podia ser qualificado, face à factualidade exposta, como um acordo/pacto de preenchimento como não tendo prazo ou com prazo e com cláusula de renovação automática, o que inviabilizaria o “enquadramento jurídico seguido na tese que fez vencimento”.

Segundo a Juíza Conselheira Doutora Maria Olinda Garcia, o caso em análise “não se trata de uma hipótese de denúncia, mas sim de revogação do pacto de preenchimento”. O meio de desvinculação do avalista deveria basear-se na aplicação analógica do disposto no artigo 1170.º do Código Civil. Existem circunstâncias que preenchem o conceito de “justa causa” do referido preceito devido (i) à ausência de qualquer dívida no momento da transmissão da quota, e por força da (ii) devolução ao Banco do cartão que servia para movimentar a conta garantida.

Para o Juiz Conselheiro Doutor Ricardo Costa, o sócio teria o direito de resolver o acordo de preenchimento, por força do disposto no artigo 437.º do Código Civil, na existência de uma “causa de inexigibilidade superveniente” por se afigurar “excessiva e irrazoável em face dos riscos abrangidos pela relação jurídica material que esteve na origem da subscrição do título cambiário «em branco» e, por tal facto, a faculdade de proceder ao preenchimento posterior da declaração cambiária incompleta pelo emitente-portador deixa de ser oponível à vontade de desvinculação jurídica, perante o desmerecimento da sua tutela em face do sujeito que «sai» do cosmos social e gestionário da sociedade”.

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No Direito nacional, merece destaque o Decreto-Lei 12/2021 de 9 de fevereiro (doravante, “DL 12/2021”) que assegura a execução na ordem jurídica interna do Regulamento (UE) 910/2014, relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno.

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